Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer:


"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir a despedida.



Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen... como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono ainda tocada por um vento de lábios azuis...



José Gomes Ferreira
Escritor
Nasceu no Porto, a 09 Junho 1900 (Porto, Portugal)
Morreu em 08 Fevereiro 1985