O tirano morreu, viva o tirano!

Deslizando pelo veludo da noite légua após légua numa insónia feita prazer e urgência: o tirano morreu.

Após uma vida bem preenchida a submeter os outros à sua vontade sucumbiu ao que não podia dominar, apagou se num sono em que lhe faltou a vigilância permitindo que a ceifeira, que de nós teve dó, o levasse.

Estranha leveza ao entrar no palácio, um silêncio palpável e nervoso, um suspiro geral de gentes e coisas aliviadas.
Um frenesim de destruição das armas de mando, dos símbolos da nossa escravatura, numa alegria nervosa de quem ainda não tomou a medida certa à liberdade. Uma apropriação do espaço interdito, aos solavancos, como pequenas vitórias conquistadas sem nelas plenamente acreditar.

Funeral. Ritual institucionalizado em que os piores se tornam os melhores, em que se ouvem laudas sobre um desconhecido horizontalmente esparramado no derradeiro trono que nada tem em comum com o mandão vertical que temos em mente.
Palavras ocas sobre um reino do além em que ele não mandará mas será bem acolhido e na utopia do qual não o reencontraremos num futuro certo.

Castelo que desmontamos pedra a pedra, despersonalização dos símbolos duma religião castradora e inquisitória que nunca foi nossa mas à qual nos era difícil escapar, dispersão necessária, banho lustral das nossas mentes em reconstrução.