Devorando o negro asfalto num galopar sem freio, cento e tal cavalos rugiam levados por mãos de ferro e pés de veludo, Huelva, Sevilha, Granada, na urgência de chegar, uma certeza tinha se feito clara na minha mente: Rosita se fué.

Guadix, saída, tortuosos quilómetros neste deserto montanhoso, enveredo por um caminho, mais uns quilómetros, arrumo o bólide numa gruta natural, montanha esburacada de refúgios trogloditas. Alforge ao ombro, quatro horas num percurso que os meus passos recordam e que nenhum trilho indica, as pedras brilhando à luz da noite de lua como laranja, enfim um poço, uma horta já moribunda... a gruta.

Agua tépida na manjedoura que outrora foi de burro. Deito me na terra arenosa, o alforge como almofada, o céu como tecto e escuto o silencio que se vai enchendo de música, a música da vida ténue que aproveita a relativamente clemente temperança da noite para seus amores e afazeres.

Perfumes de hortelã, tomilho, alecrim e terra seca.

Abóbada celeste cintilante duma pureza sem parasitas, devia ser assim que os primeiros homens viam o céu, esmagados na sua pequenez por tamanha imensidão, foi certamente debaixo dum tal deslumbramento que inventaram os deuses, para não morrerem de insignificância…

Com os primeiros raios de sol ganhei coragem e empurrei a porta. Tudo arrumado, cada objecto uma mensagem, a minha herança. Ela tinha feito como sempre disse, ir para onde não a encontrassem, acabar de respirar na natureza que tanto amou e oferecer o seu corpo como ultima dadiva aos seres vivos que dele se alimentariam, neles continuando ela de viver. Se puder voltarei aqui um dia e seguirei os seus passos.

As horas como contas de rosário nas mãos de oradoras desfiando, o silêncio do calor esmagador, a frescura da gruta, o astro que mergulha no ermo dourado destas montanhas incendiando as areias uns instantes, espectáculo desfrutado mergulhada na manjedoura, banho lustral de água que tinha bebido a lua e o sol.

Um último olhar e fecho a porta, colho o que se aproveita da horta e desço assim carregada.

Granada, Sacromonte, entregar o que Rosita deixou para a sobrinha. Entro por onde não se deve ir quando se é desconhecido, pronuncio um nome e deixo me guiar.

Pepita, como hás cambiado mujer, mas não te direi tal coisa, a vida deixa as suas marcas e a recordação tem que se adaptar. Um abraço tal furacão, um embrulho troca de mão, Rosita se fué… um pranto silencioso que nos aperta e assim ficamos, envolvidas no forte cheiro animal do seu corpo opulento, aqui os homens gostam que as mulheres cheirem a fêmeas. Te quedas, niña, vamos cantar para ti pero primero a comer!

De imagem patética engonçada em roupa demasiado garrida e pintada como uma boneca, ao subir ao tablao a Pepita torna se na deusa deste flamenco duende, daqueles que só entre ciganos, raptando-me na magia da musica, das cores e do movimento pela noite a dentro.

Manhã fresca neste antro ainda enfumado, levanto me com pesar gravando na minha memória as sombras de cada recanto e deixo o meu xaile sobre a mesa como despedida, aqui os “adios” não são costume e tenho que regressar à realidade da minha vida.

Voltarei, Rosita, voltarei quando for o meu tempo... juntar me a ti.