Na fresca noite deste morno inverno em que olhavas para o céu estrelado em muda contemplação e harmonia, os teus braços bestialmente puxados para trás das costas e uma cacetada levaram te das trevas da abóbada celeste ao breu dum poço sem fundo.

Que chão é este que arranha a tua cara e esta dor nos ombros, mãos dormentes e pulsos a estalarem?

Um jorro de água que te parece gelada, umas mãos que brutalmente te levantam e deixam te cair sobre o que aparenta ser uma cadeira, um safanão para ficares direita.

Uma luz não solar que te devassa as pálpebras.

Cai uma pergunta que fica sem resposta.
Cai porrada que se vai intensificando em alternância com as mesmas perguntas sem resposta.

Este não é o teu corpo, isto não está a acontecer.

Fecha te, faz do teu segredo uma bola, nela mete a tua alma e esconde a mais fundo, mais ainda, lá onde ninguém pode chegar.
Endurece essa bola para que não se abra, torna a lisa e resvaladiça.

Hás de falar sua puta, nem que te foda tudo quanto é buraco.

Este não é o teu corpo, só um envelope destinado a conter o teu segredo, a dor é só sentimento e não sensação, este não é o teu corpo.
Façam dele o que entenderem, tu não estás aqui, não te podem humilhar.
Este corpo é só farrapo…

Ao negro sucede o branco hospitalar, aos gritos os sussurros, ao frio o calor, á brutalidade a doçura dos gestos.

Reaprender o teu corpo, tomar novamente posse dele, abrir essa esfera de aço que contém a tua essência e o teu segredo.

Aprendeste um sentimento novo: o ódio.
Ódio que tens de transformar em força para reconstituir o teu invólucro, apagar as marcas infames, poli-lo até que nada se note.
Ódio que tens de cultivar para te fortaleceres contra o indizível e que depois terás que enterrar para que não te destruía.

Passaram os anos e mudaram os tempos, e o que já ninguém sabe ou lembra é que não falaste.


DIZ

Diz mulher
ao teu país
como lutaste até hoje

o que fizeram
de ti

o que quiseram
que fosses

Como prenderam teu
grito
sob a boca amordaçada

Mas como cantaste
assim
do teu desgosto apartada

Diz mulher
ao teu país

conta a vida em que
cresceste

Como algemaram
teus pulsos
conta aquilo que aprendeste

Do saque da tua
vida
relata os dias passados

da cadeia em que estiveste
descreve
o pavor rasgado

as torturas que sofreste
o medo
nunca acabado

Diz mulher
ao teu país
como lutaste até hoje

não cales mais
a recusa
do que quiseram que fosses

não silencies
a renúncia
a que te viste obrigada

Não desistas
de gritar
tua vida encarcerada

Maria Teresa Horta, in «Mulheres de Abril».